COLUNA

Toda mulher deveria assistir a “Ainda estou aqui”

Fernanda Torres, ainda estou aqui

O filme que garantiu o Globo de Ouro à Fernanda Torres nos mostra as mazelas de ser mãe, esposa e mulher durante a ditadura militar, até os dias de hoje

Antes tarde do que nunca! Durante as férias deste ano, acompanhei a premiação de Fernanda Torres pela atuação em “Ainda estou aqui”, obra adaptada por Walter Salles e inspirada no romance autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva. Por ter recebido o prêmio de Melhor Roteiro, no Festival de Veneza de 2024, e ter dado a Fernanda Torres o Globo de Ouro 2025, na categoria de Melhor Atriz em Filme de Drama, o filme ficou mais tempo em cartaz. E “ainda estava ali” quando consegui um espaço na agenda turbulenta de início de ano para ir ao cinema.

Fui sozinha – e que bom! Saí extasiada, chorosa, incômoda, me lembrando de quem sou, também Fernanda, também mulher. Às vezes a gente se distrai e se esquece disso: somos mulheres. É fácil se distrair com tantas demandas, trabalho, jornada tripla, TikToks e botox. Mas o filme nos lembra: somos mulheres em um país que passou por uma ditadura militar há poucas décadas.

Enquanto algumas mulheres se dispuseram a abandonar sua segurança para enfrentar a opressão militar, organizando-se em grupos de resistência, outras perderam seus filhos, companheiros, familiares e toda a vida que construíram por conta da perseguição àqueles que se opunham à forma de governo da época. Esta foi a história de Eunice Paiva, personagem real que Fernanda Torres representou nos cinemas. Eunice foi mãe de cinco filhos, esposa de Rubens Paiva, advogada e símbolo da luta contra a ditadura militar no Brasil.

O que me ponho a pensar depois de assistir ao filme é sobre o papel familiar que as mulheres desempenhavam à época e que se expande até os dias de hoje, nas casas de nossas avós, mães e, talvez, em nossas próprias casas. Não todas as mulheres: como eu disse, muitas estavam à frente dos levantes e oposição, foram torturadas e abusadas nos porões da clandestinidade.

Falo hoje sobre as mulheres que estavam em casa, cumprindo uma função social do “ser mulher”, alienadas às estruturas de poder, dependentes financeiramente de seus maridos e vivendo sob as réguas do ideal da família burguesa da época. Uma cena emblemática de “Ainda estou aqui” consiste na ida de Eunice ao banco, depois do sumiço de seu marido, para sacar o dinheiro da família.

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Não era possível sacar o dinheiro sem a assinatura do marido. A família, sem Rubens Paiva, se desestruturou financeiramente, a casa foi vendida, todos precisaram recomeçar. Eunice Paiva inspira pela possibilidade do recomeço, diante da consciência forçada pós-trauma. Foi preciso trilhar um caminho solo de mulher, estudar, ter uma carreira e defender uma bandeira, apesar da dor.

Com um movimento recente de mulheres jovens que se inspiram na ideia de “esposa troféu”, idealizando um sonho conservador de família, assistir a “Ainda estou aqui” é urgente. É preciso olhar a história para não repeti-la: os lugares dedicados às mulheres no mundo ocidental são lugares de alienação e impotência. A dependência conjugal continua sendo um dos pilares do nosso silenciamento, e não sabemos quais são os rumos disso. No fim, acho válida uma reflexão prática: quais seriam suas possibilidades financeiras hoje se os homens de sua família sumissem do dia para a noite?

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Psicanalista e Palestrante, graduada em Psicologia e em Letras, com Mestrado e Doutorado em Linguística e Pós-Graduada em Sexualidade Humana. Dedica sua carreira ao desenvolvimento de mulheres líderes no trabalho, nos relacionamentos e na vida. É autora do livro "A linguagem da loucura" e empresária, ama comunicação, esportes, viagens e celebrações.